domingo, 21 de novembro de 2010

Entrevista Com Mario Ferreira dos Santos

1 - Que fazer para que a Filosofia atinja as grandes massas populares e a juventude brasileira?

Fazer a Filosofia atingir as grandes massas populares será em primeiro lugar, obra que se cingirá a descê-la ao baixo grau de cultura de nossas massas populares. Precisamos estudar o que devemos fazer para erguê-las até à Filosofia, o que só poderá ser feito através de um desenvolvimento da cultura nacional – em linhas distintas das atuais, que tendam à Filosofia Positiva e não à Filosofia negativista e niilista que penetra em nossas escolas.

Quanto à juventude brasileira, este é o mais grave de nossos problemas: somos um país constituído de jovens, que formam a sua quase totalidade. Dado o baixo grau de cultura que temos, nossos estudantes passam a formar uma elite intelectual, o que demonstra a inferioridade em que nos encontramos.

Na História, a juventude sempre é o que decorre da sua própria natureza, apresentando aspectos positivos e negativos. Positivos, pela sua capacidade de ação e de idealismo; mas negativos, pela sua irreflexão, pelo seu despreparo e apressamento, que a leva a cair, facilmente, nas malhas dos grandes agitadores e a servir aos interesses de demagogos e políticos. Em todas as épocas da humanidade, uma parte da juventude mais ativa tendeu à luta a favor das más causas, facilitando-as.

Foram jovens que destruíram o Instituto Pitagórico, condenaram Sócrates, perseguiram Anaximandro, Aristóteles, assassinaram Hipátia de Alexandria e perseguiram Santo Alberto, S. Tomás de Aquino, S. Boaventura, quando mestres na Universidade de Paris; que uivavam pelas ruas pedindo a cabeça de Dante, de Savonarola, de Giordano Bruno; que acusavam Pasteur de “charlatão” e atiravam pedras em Einstein. Esses jovens são ativos, eficientes na sua parte destrutiva. Mas há também uma juventude construtiva.

Então, o que nos cabe fazer é orientar a juventude brasileira, dar-lhe suficiente sabedoria: clara, positiva, concreta, de modo a imunizá-la contra as tendências niilistas, para que possa pôr a sua capacidade de ação e de idealismo em algo concreto que beneficie o país. Fora disso, nada dará resultado.

2 - Quais são as correntes filosóficas que a reflexão filosófica deve levar em conta hoje?

Propriamente, julgamos que todas, porque encontramos hoje, na reflexão filosófica, a restauração ou o ressurgimento de velhos erros já refutados há séculos e milênios, que passam por inovações extraordinárias para aqueles que ignoram as aquisições do passado. É necessário, assim, revisar tudo, para mostrar que muitas novidades atuais nada mais são que velhos erros já refutados, travestidos de “verdades superantes”.

3 - As relações entre ciência e filosofia

Como a pergunta exigiria uma análise longa, sintetizar aqui o que penso, torna-se, para mim, um trabalho mais difícil do que expor as grandes contribuições que a ciência traz para as novas especulações filosóficas.

Não que esta venha modificar as linhas mestras da Filosofia Positiva e Concreta; veio, ao contrário, robustecê-las, mas trouxe contribuições que permitiram abrir campo não só para novas análises, como também para melhor colocação de outros problemas, além de uma revisão da Metodologia, sobretudo na parte da Dialética Concreta.

Trata-se da Dialética que possa de melhor modo aplicar-se à análise especulativa, para que ela não se torne meramente abstrata e sem correspondência com a realidade concreta. Basta que salientemos três pontos importantíssimos da ciência moderna. Primeiro, as pesquisas em torno da estrutura da matéria sensível, que levaram a ciência a penetrar na constituição da matéria, afastando-se o conceito de matéria do século dezenove.

Temos, assim, uma visão muito mais profunda e ampla do que aquela que os filósofos anteriores possuíam, também a Filosofia Positiva de séculos anteriores, aproximando-se a passos gigantescos da concepção que os pitagóricos haviam apresentado, e que fora considerada por muitos como extravagante, tornou-se muito mais compreensível.

Naturalmente, se alguém considera que o número é apenas o da matemática vulgar, o da extensão, da quantidade, ou o esquema da participação quantitativa, é lógico que a definição pitagórica de que as coisas são números passa a ter um sentido demasiadamente brutal e inaceitável.

Mas no momento que se compreender que número não é apenas isso, mas todo o esquema de participação de qualquer espécie de unidade, porque é a manifestação da unidade sob todos os seus aspectos e, portanto, sob todas as formas manifestativas em que se exija o numeroso e, portanto, participado, participante e logos da participação e que, segundo o logos, existem tantos números quantos logoi de participação, já muda completamente o sentido e então poder-se-á compreender que, segundo todos os possíveis aspectos em que se possa tomar a unidade, podemos construir matemáticas.

A ciência moderna, graças à penetração da Matemática, de início na parte quantitativa e depois no qualitativo – como se viu nas graduações – e nos relacionais – como se vê nos funtores – caminha hoje, inevitavelmente, para uma penetração cada vez maior no caminho que já fora percorrido pelos antigos pitagóricos.

O progresso científico processou-se e firmou-se na medida em que a ciência se matematizou; a ciência, por outro lado, separou-se da Filosofia, não devido a essa matematização, mas em virtude dos filósofos, que não compreenderam bem essa matematização, que deveria ter permanecido no campo da Filosofia Positiva, se realmente fosse concreta.

Por isso, o aparente abismo hodierno entre Filosofia e ciência pode perfeitamente ser ultrapassado, flanqueado pela Filosofia Concreta; é o que estamos fazendo com as nossas obras, apesar de muitos julgarem ser impossível a um brasileiro tentar fazê-lo.

Segundo, ainda no campo da pesquisa da estrutura da matéria, a descoberta das tensões, sobre as quais os físicos modernos, estarrecidos ante a sua realidade, procuram escamoteá-la, sem poder enfrentar, devidamente, a implicância que a aceitação desta realidade exigiria, e que os levaria a uma especulação filosófica para a qual não estão preparados.

A terceira contribuição importante é a referente à genética, que dá novos subsídios para a melhor compreensão do homem, para novos estudos antropológicos e uma nova reflexão em torno da significação do ser humano.

Poderíamos citar inúmeros outros aspectos, que também são imprescindíveis para a reflexão filosófica. Aliás, são tantos, que não caberiam, naturalmente, no espaço que temos para responder.

O que queremos apenas salientar é que devemos compreender que, das causas às leis e aos princípios de cada ciência, podemos alcançar uma sabedoria que está acima de toda ciência, uma sabedoria como a estudaram os grandes pensadores de todos os tempos, que é a “Décima Ciência” dos antigos, de que nos falava São Boaventura.

Essa Ciência, cabe-nos construí-la; será a metalinguagem do homem, unindo todos os especialistas numa visão global. Essa construção é a nossa grande tarefa atual, para que possamos aproveitar as grandes contribuições da ciência na elaboração de uma visão filosófica mais completa, mais perfeita e mais atuante apara um melhor futuro da humanidade.

Assim abriremos campo para novas análises, não mais as que colocavam mal as questões, de modo a torná-las, por isso mesmo, insolúveis e estéreis suas disputas, mas lançando novas disputas num campo mais fértil, mais criador, sob aspectos mais seguros, que poderão abrir ao homem novas perspectivas, com dados extraordinários, em benefício da cultura do homem de amanhã.

É diante deste horizonte, ante esta aurora que se anuncia, que me anima o que tenho realizado, muito embora eu não seja compreendido por muitos daqueles que se dizem amantes dessa sofia, a Matese, a sabedoria, a intuição sapiencial.

Posso, agora, completar a minha resposta ao item IV, dando, assim, o sentido da reflexão filosófica que se pode atribuir ao pensamento brasileiro, se ele quiser ser genuinamente filosófico.

Todos aqueles que, no Brasil, revelaram que possuíam mente filosófica – e não foram muito numerosos, porém brilhantes – tenderam sempre para um pensamento de caráter sintético, isto é, não ficaram totalmente presos às correntes filosóficas européias e dependentes delas. Sempre houve, entre nós, o desejo de abarcar o universal e esta característica é naturalmente justa e própria de um povo que vive em si mesmo este universal.

Por isso, o Brasil é, dos países atualmente existentes, mais capacitado para uma Filosofia universalizante ou, pelo menos, para uma nova linguagem filosófica, capaz de unir o pensamento que divergiu tão profundamente no campo já esgotado do pensamento europeu. Aqueles que não pensam assim, que não admitem essa possibilidade para nós, que continuem vivendo o seu modo de pensar. Nós preferimos, porém, divergir.

4 - Colaboração da Filosofia para humanizar a civilização

Esse item pode-se dividir em três: 1º) a humanização da civilização atual; 2 ) a evidenciação do valor da pessoa humana e 3º) a contribuição para a paz interior e felicidade do homem.

Primeiro: hoje, sobretudo no mundo livre, graças ao surgimento de um desejo ecumênico de aproximação dos homens, a humanização da civilização pode ser obtida – em parte, naturalmente – pela colaboração da Filosofia, pela revisão honesta de todos os grandes autores do passado, que foram caricaturizados, falsificados e apresentados num sentido que não é realmente o da sua Filosofia.

Poderíamos citar aqui, desde os pitagóricos até o século passado, autores que precisam ser revisados e reestruturados, para evitar-se aquelas “fables convenues”, aquelas mentiras históricas, os mitos e as interpretações falsas que se fazem da sua obra, com o simples intuito de denegri-los ou de favorecer outras posições.

Devemos tomar a seguinte posição: procurando primeiro tudo o que nos une, depois pensemos em estudar o que nos separa, para ver se, o que nos separa, pode sofrer modificações ou acomodações, que permitam que aquilo que nos une, fomente a humanização da própria civilização. Daí decorreria, pois, inevitavelmente, a segunda parte, sobre o valor da pessoa humana que, sem dúvida, sofreu, neste século, devido ao desenvolvimento dos totalitarismos, uma afronta à sua dignidade.

De todos os lados surge este tema, que pode e deve ser reestruturado em termos positivos e concretos. Finalmente, resultaria, então, a terceira parte, porque a paz, a tranqüilidade interior, a serenidade do espírito só podem ser alcançadas quando a mente assenta plenamente na Sabedoria, alcançando aquelas verdades, que estão ao nosso alcance e que são o fundamento de nossa verdadeira felicidade.

Seguimos em suma, o preceito de Pitágoras: “Ama a verdade até o martírio; não ames, porém, a verdade até à intolerância”! Procurando o que nos une realmente com todas as outras correntes e posições filosóficas, podemos abrir caminho para uma compreensão nos aspectos em que encontramos diferenças, que, muitas vezes, são apenas acidentais e não aptas a justificar uma separação profunda.

Esse já seria um caminho de maior aproximação entre os homens, porque, na medida em que nos dedicamos à leitura dos textos, vamos compreendendo a ação nefasta dos intermediários.

Sabemos que, na Filosofia e temos milhares de exemplos para citar, os intermediários, os discípulos, em regra geral, falsificam a obra dos mestres segundo determinados interesses. Os adversários caricaturizam segundo outros interesses, e o resultado é a deformação total do verdadeiro pensamento do autor.

A obra apresentada de segunda, terceira ou quarta mão está completamente desfigurada, o que permite ao autor um ataque fácil, pois não é difícil destruir caricaturas. Há casos, na Filosofia, em que autores tiveram suas obras refutadas antes de as terem publicado, eram, pois, obras conhecidas só pelo autor.

Muitos livros meus foram “refutados” antes de serem publicado, pelo simples fato de eu pretender tratar de tal ou qual matéria. Sem nem ao menos saberem qual a minha verdadeira posição num assunto, já haviam adversários para refutá-los. Não em público, porque isso eles não têm coragem de fazer, mas nos “corredores”.

5 - Filosofia nacional e o pensamento filosófico estrangeiro

Quando hoje se visita Portugal e se vê qual a atitude predominante neste país em relação ao seu patrimônio filosófico, espanta verificar a completa ignorância sobre o que de grande já se realizou na Filosofia Portuguesa.

Atualmente, nada se estuda, nas escolas, da Filosofia Portuguesa dos séculos XV, XVI e XVII. Parece que Portugal nada realizou; desconhece-se que, por quase dois séculos, a Filosofia Portuguesa imperou no mundo.

Desconhecem-se autores como: Petrus Hispano; Antonio a Santo Domínico,.O.P.: Francisco Suárez, S.J., que embora espanhol, viveu grande parte da sua vida intelectual em Portugal, onde adquiriu o seu saber, além dos outros dois Francisco Soares, lusitanos; Martim de Ledesma, espanhol de origem, cuja formação intelectual realizou-se igualmente em Portugal; Francisco a Cristo, O.S.A., e Egídio da Apresentação, .O.S.A, Andréias de Almada, S.J. ; Ludovico de Sotto Mairo, O.P.; Gabriel da Costa; Hector Pinto, O S.; Hieron; Francisco da Fonseca, O.E.S.A; Manoel Tavares, da Ordem carmelitana e Francisco Carreiro, da Ordem cisterciense; Jorge O Serrão, S.J.; Ferdnando Peres, embora nascido em Córdova, foi outro que adquiriu a sua cultura em Portugal; Ludovico de Molina, S.J., nascido na Espanha, viveu, contudo, a maior parte do seu tempo em Portugal, onde estudou e foi discípulo de Pedro da Fonseca, S.J., o Aristóteles português; Petrus Luís, S.J.; Antônio Carvalho, S.J.; Baltazar Álvares, S.J.; Hieronimus Fernandes, S.J.; Gaspar Gonçalves, S.J.; Ludovicus de Cerqueira, S.J.; Gaspar Vaz, S.J.; Diogo Alves, S.J.; Francisco de Gouvêa, S.J.; Ferdinando Rebelo, S.J.; Gaspar Gomes, S.J.; Benedictus Pereira, S.J.; Sebastião de Couto, S.J.; Blásio Viegas, S.J.; Emanuel de Góis, S.J.; Cosmas de Magalhães, S.J.; Pedro da Orta, S.J.; João de São Tomás, O.P., para citar apenas alguns, Portugal nos deu esta floração de filósofos, afora os mais conhecidos, como Sanches e outros, porque correspondem à atual maneira de filosofar no mundo moderno.

6 - Pergunta-se: Pode-se falar numa Filosofia de Portugal ou apenas numa Filosofia em Portugal?

Respondo: Pode-se falar, sim, numa Filosofia de Portugal e também numa Filosofia em Portugal.

Nós, brasileiros, contudo, por um espírito de colonialismo passivo, que nos domina até hoje, não cremos em nós mesmos. Só damos valor àquilo que tem origem estrangeira, e não seja de Portugal, porque também esta procedência não goza de nossa admiração. É natural, pois, que falar numa Filosofia Nacional cause manifestações de completa descrença.

Não acreditar que ela existe, nem tampouco que possa surgir, é atitude geral. Ainda hoje, “famosos professores de Filosofia” em Portugal dizem que é impossível criar-se uma Filosofia autóctone naquele país.

Para o português, o que vale é: “Penso, logo não existo” ou “Existo, logo não penso”. Podemos dizer que existe uma Filosofia no Brasil, mas se quiséssemos realmente falar numa Filosofia do Brasil, tal afirmação exigiria exame. Não conhecemos obra de criação propriamente peculiar. Se estamos tentando realizar algo nesse sentido, não podemos afirmar, por motivos óbvios, que o seja.

Podemos dizer que, pela nossa completa libertação de um passado metafísico, filosófico, histórico, que pese sobre nós e entrave as nossas possibilidades de ação, estamos em condições de criar uma Filosofia Ecumênica, uma Filosofia que seja realmente a Filosofia, por entre os muitos modos de filosofar.

A heterogeneidade nas modalidades de filosofar surge nos períodos de predominância do empresário utilitário no contexto de uma cultura. Quando este predomina, prevalece a moda que penetra em todos os setores: na Filosofia, na Arte etc., como acontece no mundo atual.

Esta variação tremenda de idéias, as quais surgem de todos os lados, não revela nenhuma pujança; é ao contrário, um índice de fraqueza, como a do período final da cultura grega e alexandrina. A Filosofia Positiva (fundada na positividade do ser, que alcança a perenidade, porque atinge as leis eternas) e Concreta, precisamente, porque, captando estas leis, relaciona todos os matizes de todos os aspectos formais – para dar-lhes uma unidade superior- é necessariamente Concreta, embora não no sentido vulgar do termo.

A Ciência, felizmente, conseguiu libertar-se da moda, como o fez a Matemática; por isso, como se construiu uma Matemática, uma Ciência, também se pode construir uma Filosofia.

Em que o pensamento brasileiro pode beneficiar-se do pensamento filosófico estrangeiro; reunindo o que há de positivo em todas as grandes realizações, provenham de onde provierem, construindo, depois, uma nova concreção e oferecendo-a ao mundo.

Esta é a única possibilidade que nos cabe e que estamos em condições de realizar, muito embora a maioria de nossos intelectuais não creia nisto e negue, terminantemente, que tal seja alcançável por nós, açulando-se com sanha contra quem tentar fazê-lo.

Deve abrir-se a reflexão filosófica para uma visão transcendental da realidade, na perspectiva das razões metafísicas?

Sem uma visão transcendental da realidade não pode haver Filosofia, porque se esta se distingue da Ciência por dedicar-se esta ao estudo das causas próximas e a Filosofia às causas primeiras e últimas, fatalmente esta deverá ter uma visão transcendental da realidade ou, pelo menos, tocá-la, abordá-la.

Ora, além das causas primeiras e últimas, temos de estudar os princípios, objeto fundamental da Mathesis Megiste – dos pitagóricos que chamamos Matese em português – cuja elaboração estou realizando em obra especial, que é a Axiomática baseada em Boécio. É a Décima ciência dos pitagóricos, a Contemplação sapiencial de São Boaventura, a Sapiência de Santo Tomás etc.

Esses princípios são matéria que constitui, propriamente, o que em todos os ciclos culturais, em todas as altas religiões se chama de Sabedoria: Sabedoria infusa ou Sabedoria em que o homem participa da Divindade, ou ainda a própria Sabedoria divina que o homem pode abordar, tocar e na qual consegue penetrar. São temas que, naturalmente, exigem discussões sobre os seus principais aspectos.

Mas o que é inegável, e não poderá deixar de abranger nenhuma visão filosófica em profundidade, é que há princípios eternos, leis eternas, que dominam todas as coisas, as quais não devem ser confundidas com as leis naturais nem com as da ciência. Este estudo levará, inevitavelmente, a uma visão transcendental da realidade, e sem ele não se faz Filosofia em profundidade, mas apenas de superfície.

Esta tendência, a de uma Filosofia que não ultrapassa a imanência da esquemática – que o homem pode construir apenas dentro de sua experiência mais vulgar – predomina no mundo moderno.

7 - Qual é a íntima conexão entre a posição gnosiológica, metafísica e ética; entre a teoria e a prática?

Parece-nos que aqui há duas perguntas: lª) a que interroga sobre íntima conexão entre a posição gnosiológica, metafísica e ética e 2ª) a íntima conexão entre a teoria e a prática.

Responderei à primeira, depois à outra. As dificuldades no campo da Gnosiologia, da Metafísica, inclusive no da Ética, surgem naquele filosofar que coloca o homem quase como um ser estranho ante o universo, o qual é impermeável para ele. Coloca, assim o homem numa situação de ser completamente ilhado, bloqueado, sem a menor possibilidade de penetração mais profunda.

As conseqüências deste pensamento pessimista, negativista, são as seguintes: não é possível, com os nossos meios cognoscitivos, alcançar o que nos transcende e dar, também à própria Ética, uma visão transcendental. Desta forma existe a tendência a considerar todo o filosofar do homem apenas como uma obra humana -–restringida, portanto, aos limites de nossa experiência – fundamentada nos dados de nossos sentidos e meios limitados de conhecimento.

Chega-se, ademais, à conclusão de que todo e qualquer esquema que construamos jamais corresponde à realidade que nos ultrapassa. Estamos em pleno agnosticismo, ceticismo, pessimismo, ficcionismo, pragmatismo, materialismo, niilismo, “desesperismo”; são conseqüências que surgiram do filosofar moderno.

Portanto, inegavelmente, a reflexão filosófica deve abrir-se para uma visão transcendental da realidade, sob pena de nos perdermos em armadilhas feitas por nós mesmos, afirmando uma deficiência que, na verdade, não temos.

A segunda parte da pergunta é importantíssima. Surgem nos gregos as discussões em torno da teoria e da prática, da Filosofia e da Ciência Especulativa, da Filosofia e da Ciência prática.

Avassalaram a atenção dos filósofos de maior responsabilidade intelectual e, apesar dos grandes trabalhos realizados – que fazem a nítida distinção entre a teoria e prática – que chegaram até nós, a maior parte deles é completamente desconhecida para aqueles que não tem nenhuma ligação com a Filosofia Positiva e Concreta, a qual pertence aos grandes ciclos culturais da humanidade.

Resultado: estamos hoje vivendo uma completa confusão entre teoria e prática. Estabelece-se determinadas proposições teóricas, julgando-se que elas são perfeitamente práticas e vice-versa. Algumas proposições, extraídas exclusivamente da prática, passam a constituir verdadeiros axiomas teóricos. O resultado é que vivemos hoje num mundo de utopias e quimeras; como conseqüência, há desilusões, cujo resultado final é desespero.

8 - A Filosofia é uma ciência objetiva ou uma produção pessoal, puramente subjetiva, do pensamento?

Aqui está um ponto de partida, verdadeiro divisor de águas. Desde o momento em que nos coloquemos na posição de quem pensa que a Filosofia é mera produção pessoal, puramente subjetiva do pensador, pomos aquela no campo da Estética.

Mas se admitimos que a Filosofia é uma ciência objetiva, isto é, uma busca humana da sophia suprema, que nos ultrapassa e transcende, ela adquire uma feição completamente distinta. Em todos os ciclos culturais, a Filosofia Positiva e Concreta é uma ciência objetiva. Em todos os momentos de decadência ou refluxo, que são vários, ela se torna puramente subjetiva.

A Filosofia Moderna está caindo no subjetivismo. Vimos até a tendência de um Heisenberg querendo colocar a própria Ciência no subjetivismo, pela sua teoria da indeterminação. Há necessidade de esclarecer-se, sobretudo para aqueles que querem fazer Filosofia, o seguinte: se desejam fazer obra puramente subjetiva, dediquem-se à Estética e deixem em paz a Filosofia, assim como se pede aos positivistas que façam Ciência e não Filosofia, porque são coisas que devem ser distinguidas, cuja confusão só atrasa o progresso intelectual da humanidade.

Filosofia exige demonstração e não meras asserções. Ademais, não devemos confundir filósofo com pensador que também trata de Filosofia – e muito menos ainda com professor de Filosofia. Em nossa época, o professor já se julga “dono” da Filosofia e, neste caso, há o perigo de se pensar que o fim é uma Filosofia de professores para professores de Filosofia.

9 - Que pensar sobre o problema do ateísmo contemporâneo?

Este tema é de uma vastidão tremenda, já que o ateísmo contemporâneo não surge a rigor de uma especulação filosófica, mas sim, de certas decepções de caráter mais ético do que filosófico. A meu ver, o ateísmo não surge, propriamente, em torno do Deus Uno e de seus atributos, mas, em torno dos atributos do Deus Treino, ou Deus pessoal ou dos atributos morais de Deus.

Não conheço nenhum trabalho, de nenhum ateísta, que se limite a atacar, especificamente, o Deus Uno. Conheço agnósticos e cépticos, mas não ateístas que tomem uma posição definitiva, negadora da possibilidade de um Ser Supremo. O ateísmo é sempre o produto de uma má colocação do problema de Deus.

Como “na Filosofia não há questões insolúveis, mas apenas mal colocadas”, o ateísmo moderno parece uma questão insolúvel, porque é mal colocada. Todas as ocasiões em que tive a oportunidade de me encontrar com ateístas, bastou-me pedir-lhes que descrevessem o que entendiam por Deus, para, nessa descrição, verificar quais as razões de seu ateísmo.

Foi-me fácil afastá-los de sua posição e colocá-los na aceitação de um Ser Supremo, o que é, para nós cristãos, o ponto de partida para uma total recuperação.

10 - Em que sentido a reflexão filosófica pode ter tonalidade cristã? Pode o cristianismo prestar benefícios ao filósofo?

Eis também outra questão que, bem colocada, é de solução fácil. O ponto de partida está em saber o que se entende por tonalidade cristã. Se considerarmos Cristo sob um aspecto, no qual podemos encontrar-nos quase todos, isto é, representando Ele o que o homem tem de mais alto na sua forma perfectiva, caminhando para a Divindade – ou mesmo, neste sentido, reaproximando-se do Ser Supremo – podemos afirmar que a reflexão filosófica não pode deixar de ter uma tonalidade cristã.

Não pode haver uma reflexão verdadeiramente filosófica que não erga o homem do menos para o mais. Portanto, o Cristianismo presta e sempre prestou benefícios ao filósofo, razão pela qual a Filosofia teve o seu maior desenvolvimento sob a égide do Cristianismo. Será também apenas através da concepção cristã, que se poderá realizar uma Filosofia superior capaz de unir os homens e fazê-los se compreenderem, pois Cristo representa, no homem, tudo quanto ele tem de mais elevado.

Já dizia Pitágoras que a verdadeira piedade – aliás, a eusébeia – era a justa e nobre veneração da Divindade, consistindo aquela na prática de nossos atos perfectivos superiores. Aproximando-nos, pois, de Deus na medida em que praticamos, de modo mais perfeito, os nossos atos. Em suma: a eusébeia (a verdadeira piedade), para os pitagóricos, é a assemelhação a Deus.

Este conceito não é exclusivo dos pitagóricos, mas de revelação universal, de todos os ciclos culturais. A verdadeira Filosofia caminha paralela à Religião, porque, se esta é o caminho para elevar o homem a Deus pelas ações, aquela é o caminho para elevar o homem – pela meditação, pelo pensamento, pela pesquisa, pela especulação – também, a Deus. Por isso, a Religião pertence à vida prática e a Filosofia sobretudo à vida especulativa – o que não impede que a Filosofia especule também sobre a vida prática e nela atue dentro das normas desta.

Isto corresponde à vontade, ao entendimento humano na sua ação em busca do bem; mas a Filosofia é a vontade e a especulação em busca da verdade. Consequentemente, o homem, à medida que especula pela verdade, aproxima-se do Ser Supremo e à proporção que busca o seu justo bem aproxima-se de Deus.

Esta é a razão por que o divórcio entre Filosofia e Religião – que se procurou fazer no mundo ocidental como também já se fez em outros ciclos culturais, em situações correspondentes a esta – é apenas uma covardia, a ser substituída por uma atitude heróica, enfrentando, mostrando os defeitos dessa posição e propondo os verdadeiros caminhos de ascensão.

Visto sob este aspecto, o Cristianismo é universal, porque pertence a todos os ciclos culturais. Ele foi o pensamento verdadeiro mais profundo de todos os ciclos culturais, sendo, por isso, inseparável da religião do homem nos seus aspectos perfectivos. É o homem enquanto Vontade, Entendimento e Amor, correspondendo, na concepção católica, às Três Pessoas da Trindade.

Caminhando neste sentido, retiraremos o homem do pântano em que está afundado, do estado de desespero no qual imergiu, podendo tornar a oferecer-lhe uma nova perspectiva e esperança, que poderá solidificar uma fé verdadeira e robusta.


Fonte: LADUSÃNS, S. Rumos da filosofia atual no Brasil, São Paulo, Loyola, 1976, pp. 407-42.
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