sábado, 4 de setembro de 2010

Acerca do "Aniquilacionismo Moderado"

Existe uma grande briga no meio cristão. Teólogos e filósofos trocam suas farpas quando o assunto é o estado do indivíduo após a morte. Quando falamos da Bíblia nos surgem logo à mente narrativas que são "constrangedoras" para ambos os lados. Vários textos, contextos e teorias são propostas neste assunto tão complexo. Qual foi realmente a crença do Jesus histórico sobre o pós-morte? Não vou dar aqui explicações sobre como se deve interpretar o que Jesus disse ao ladrão na cruz ou o que este queria transmitir com a narrativa do rico e Lázaro. Farei isto em outra oportunidade.

Para ser mais curto quando trato deste assunto com inerrantistas e não ter que gastar tempo a analisar contextos "constrangedores" para a minha crença nesta doutrina tão combatida que chamam popularmente de sono da alma apresento este argumento. Me parece que todo meu argumento mostra-se totalmente suficiente para derrubar muitas destas objeções, mas deve-se lembrar que ele se sustenta na alegação teológica de que a Bíblia é inerrante, algo em que não creio. O apresento logo abaixo:

1. Paulo era um profundo conhecedor da doutrina de Jesus;
2. Paulo cria que Jesus era o Messias;
3. Paulo era claramente aniquilacionista;
4. Logo, o aniquilacionismo é verdadeiro.

Creio que os imortalistas concordem comigo quando o que está em questão são as duas primeiras premissas, mas discordam totalmente das minhas afirmações de que Paulo era aniquilacionista e de que este tipo de aniquilacionismo seja verdadeiro. Elas partem da conclusão de que Paulo era aniquilacionista, depois da afirmação de que Jesus pregou o aniquilacionismo eu concluo que o aniquilacionismo é verdadeiro. Existem realmente várias formas de aniquilacionismos, mas isto não vem ao caso. Seria uma perda de tempo neste momento.

Gostaria, entretanto, de fazer uma curta análise das minhas premissas e explicar o porquê delas. Por que escolhi Paulo e não outro escritor bíblico? Primeiramente porquê Paulo era um profundo e muito influente conhecedor da doutrina de Jesus (1), o que é mais claro sobre o problema da morte e o que mais trata sobre esta questão. Embora não tenha tido a mesma relação que os outros apóstolos tiveram com Jesus, Paulo foi o que melhor entendeu sua mensagem. Paulo teve também um profundo relacionamento com os discípulos de Jesus e por isto é bem plausível que ele era conhecedor das afirmações de Jesus que dão vazão a um aparente imortalismo.

Em segundo lugar Paulo cria que Jesus era o Messias (2) e sendo conhecedor de Sua doutrina acerca do pós-morte é bem improvável que ele fosse contra a pregação de seu Mestre. Paulo cria que Jesus era Aquele que revela todos os mistérios, até mesmo quando falamos da morte. Se as pregações de Jesus fossem claramente imortalistas seria totalmente improvável que o apóstolo dos gentios fosse contra elas. Isto seria ir contra a divindade de Cristo. O mesmo se dá se Cristo fosse aniquilacionista. Se Jesus pregasse a ressurreição total do indivíduo dificilmente haveria no discurso paulino algo contra este ensino. A conclusão é que Paulo não possuia motivos para negar uma doutrina de Jesus. Além disso, é necessário reconhecer que todas as narrativas atribuidas a Jesus utilizadas por aqueles que crêem na imortalidade da alma são obscuras e nos permitem mais do que uma leitura. Mesmo que esta idéia do "discípulo rebelde" for cogitada é coerente supor que haveria uma certa aversão por parte dos demais apóstolos de Jesus.

Quanto a minha (polêmica, mas antiga e irritante) afirmação de que Paulo não cria nesta imortalidade natural (3) posso utilizar textos que demonstram isto claramente. São textos que não nos permitem leituras alternativas sem gerar um certo desconforto independente da doutrina da inerrência bíblica ou da hermenêutica forem colocadas em questão. Pode-se dizer resumidamente que Paulo via à morte como um problema e os cristãos atuais a vêem como uma amante.

Oscar Cullmann, protestante francês escreveu no seu livro Immortalité de l’âme ou Résurrection des morts? (Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?):

"Há uma diferença enorme entre a expectativa cristã da ressurreição dos mortos e a crença grega na imortalidade da alma. . . . Embora o cristianismo mais tarde conciliasse essas duas crenças e hoje o cristão mediano confunda-as completamente, não vejo motivo para se ocultar o que eu e a maioria dos eruditos consideramos ser a verdade. . . . A vida e o teor do Novo Testamento estão totalmente dominados pela fé na ressurreição. . . . O homem inteiro que está realmente morto é trazido de volta à vida por um novo ato criativo de Deus."

Embora, eu discorde de Cullmann em alguns pontos não posso negar assim como vários outros teólogos cristãos não negaram e não negam que a expectativa cristã pela ressurreição descrita na Bíblia descarta totalmente a possibilidade de uma crença na imortalidade natural dos cristãos por parte daqueles que mantiveram tal esperança.

Devemos entender que estamos falando sobre hermenêutica, uma ciência que trata da interpretação dos textos. Ela tem sido utilizada pelos teólogos para se conseguir entender os textos bíblicos. Entre as regras principais desta ciência podemos destacar:

1. O texto deve ser interpretado no seu contexto e nunca isoladamente;
2. Deve-se buscar a intenção do escritor, e não interpretar a intenção do autor;
3. A análise do idioma original (hebraico, aramaico, grego comum) é importante para se captar o melhor sentido do termo ou as suas possíveis variantes;
4. O intérprete jamais pode esquecer os fatos históricos relacionados com o texto ou contexto, bem como as contribuições dadas pela geografia, geologia, arqueologia, antropologia, cronologia, biologia, etc.

Jesus, Paulo e os Saduceus

Creio que os saduceus compõem um grupo muito importante ao tratarmos da crença do Jesus histórico. Não podemos esquecer que estes negavam a ressurreição e o juízo futuro, afirmavam que a alma morre com o corpo Mt 22. 23-33, At 23. 8, negavam também a existência dos anjos e dos espíritos, At 23. 8. Jesus discorda dos saduceus acerca da ressurreição e dos anjos, mas não do aniquilacionimo. Ele afirma que o estado de gozo não está no pós-morte, mas na ressurreição.

Mateus 22
23. Naquele mesmo dia, os saduceus, que negavam a ressurreição, interrogaram-no:
24. Mestre, Moisés disse: Se um homem morrer sem filhos, seu irmão case-se com a sua viúva e dê-lhe assim uma posteridade (Dt 25,5).
25. Ora, havia entre nós sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu. Como não tinha filhos, deixou sua mulher ao seu irmão.
26. O mesmo sucedeu ao segundo, depois ao terceiro, até o sétimo.
27. Por sua vez, depois deles todos, morreu também a mulher.
28. Na ressurreição, de qual dos sete será a mulher, uma vez que todos a tiveram?
29. Respondeu-lhes Jesus: Errais, não compreendendo as Escrituras nem o poder de Deus.
30. Na ressurreição, os homens não terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como os anjos de Deus no céu.
31. Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus vos disse:
32. Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó (Ex 3,6)? Ora, ele não é Deus dos mortos, mas Deus dos vivos.
33. E, ouvindo esta doutrina, as turbas se enchiam de grande admiração.

Geralmente alguns imortalistas tentam defender a sua doutrina apelando para os versículos 32 e 33 ou até mesmo para os versículos 37 e 38 do capítulo 20 do Evangelho de Lucas, mas não devemos ignorar o contexto da discussão que envolve Jesus e os saduceus. Jesus está simplesmente transcendendo a perspectiva de que os patriarcas hebreus estavam fadados à morte. O Evangelho de Lucas deixa claro que Jesus ao dizer que eles são considerados "vivos para Deus" quer revelar o status dos mortos salvos porque ressussitarão no último Dia:

"E que os mortos hão de ressuscitar também o mostrou Moisés junto da sarça, quando chama ao Senhor Deus de Abraão, e Deus de Isaque, e Deus de Jacó. Ora, Deus não é Deus de mortos, mas de vivos; porque para ele vivem todos." A mesma linguagem podemos notar em João 11. 26 quando Jesus veio a dizer "e todo aquele que vive, e crê em mim, jamais morrerá. Crês isto?". É interessante que Jesus não ensina que todos os mortos "jamais morrerão", mas que apenas os crêem e são herdeiros do Seu Reino.

Um outro possível sinal de que Jesus cria em uma espécie de aniquilacionismo pode-se perceber em João 11. 25: "Declarou-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá".

Quando falamos sobre a narrativa do rico e Lázaro uma análise competente irá concluir que se trata de uma linguagem simbólica assim como muitas outras utilizadas nas parábolas de Jesus, pois a mesmo apresenta a ressurreição como a forma padrão de se permitir um contato entre os vivos e os que morreram. Lucas 16. 29 diz: "Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, pai Abraão; mas, se algum dentre os mortos fosse ter com eles, arrepender-se-iam. Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite." Alguém pode criar uma explicação alternativa a esta interpretação, mas já que se trata de uma explicação cumulativa acredito que é muito mais coerente.

É interessante olharmos também para o texto de Atos pelo fato dele ser uma continuidade do Evangelho de Lucas, livro que possui alguns relatos utilizados por imortalistas inerrantistas para defender a possibilidade do imortalismo. A divisão dos dois escritos é posterior para a finalidade de distinguir a história de Jesus e a história da Igreja. O livro de Atos já nos apresenta um Paulo aniquilacionista:

Atos 23:
6. Paulo sabia que uma parte do Sinédrio era de saduceus e a outra de fariseus e disse em alta voz.: Irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseus. Por causa da minha esperança na ressurreição dos mortos é que sou julgado.
7. Ao dizer ele estas palavras, houve uma discussão entre os fariseus e os saduceus, e dividiu-se a assembléia.
8. (Pois os saduceus afirmam não haver ressurreição, nem anjos, nem espíritos, mas os fariseus admitem uma e outra coisa.)

Mais sinais inegáveis do aniquilacionismo paulino:

Romanos 8:
1. Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.
2. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte.
11. Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita.

1 Coríntios 15
16. Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou.
17. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados.
18. E também os que dormiram em Cristo estão perdidos.
19. Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
26. Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte.
29. Doutra maneira, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam? Por que se batizam eles então pelos mortos?
32. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos.
51. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados;
52. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados.
53. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade.
54. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória.

2 Timóteo4
6. Quanto a mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado.
7. Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé.
8. Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda.

Dada a pregação paulina daquilo que pode ser chamado de mortalismo cristão ao tomarmos em conta relatos imortalistas como as aparições de Samuel a Saul e de Moisés a Jesus como históricos e interpretarmos também literalmente a promessa de Jesus ao ladrão da cruz o máximo que poderíamos concluír é que esta imortalidade dos profetas judeus e do pecador da cruz é simplesmente uma excessão que não condiz com o padrão divino para os cristãos no pós-morte. Seriam portanto, pessoas privilegiadas por Deus e o seu estado não serve como um padrão para os demais mortos. Creio que seja um grave erro inferir da alegação de que por estas pessoas supostamente desfrutarem da imortalidade da "alma" que nós estejamos sujeitos ao mesmo princípio. A meu ver, porém, são simplesmente mitos criados sobre a figura "divinizada" de alguns personagens bíblicos como um sinal da aprovação do ministério de Jesus e Sua superioridade sobre as duas maiores autoridades espirituais: Moisés, representante da Lei e Elias, representante dos Profetas, constitindo a divisão básica do cânon judaico.

A conclusão é que se a Bíblia não se contradiz ao falar sobre estas questões, ela prega o mortalismo cristão e que alguns casos são simplesmente uma excessão que não corresponde com o "modelo natural" proposto por Deus assim como Elias e Enoque foram uma excessão ao não experimentarem a morte física. Creio que esta leitura seja possível já que não creio que exista explícitamente uma contradição entre as duas pregações.

Poderia mudar a minha definição de mortalismo cristão de doutrina que nega em qualquer circunstância a existência de uma alma imortal além do corpo físico para doutrina que prega que o modelo divino para a humanidade é a morte e a ressurreição totais do indivíduo.

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